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Mais aventuras na Serra de Paranapiacaba
por Lex em 06/Jan/2008, sobre relatos
Ah, o revéillon. Já virou tradição eu estar acampado em algum lugar longínquo na hora da virada. Quase sempre sem fogos, sem brilho, muitas vezes sem espumantes, e em tantas outras sem um bom abraço. Solitário? É, bastante. Incompreensível para muitas pessoas. Mas para mim é um momento que deve ser assim mesmo, de paz, de calma, de silêncio, de reflexão. E de boa aventura! Adrenalina circulando nas veias, estar isolado a mercê do próximo lance é minha comemoração. Iniciar uma nova volta ao sol fazendo o que eu mais gosto na vida é uma ótima forma de iniciá-la. Além disso, acampar me faz sentir um homem mais completo: tenho meu objetivo para cumprir no dia, à noite tenho que arrumar a casa, em alguns casos lavar a roupa, depois preparar a janta.
E no dia seguinte lavar a louça, limpar a casa, empacotar tudo e seguir novamente. Eu carrego tudo que preciso comigo, e aquilo é tudo que eu tenho para sobreviver. Sem carro do ano, status profissional, ambição, competitividade, reuniões e conflitos. Simplesmente sobreviver. E parece que estamos tão acostumados à complexidade de ser urbano que fazer isso nos parece tão impossível! Mas, respiremos fundo, joguemos o mochilão às costas e encaremos o desafio
Dia 28 foi um dia agitado, fiz as últimas compras e desta vez por uma séria limitação financeira tive de ser, hum, minimalista. Quase sempre me entupo de barrinhas de cereal, mas dessa vez o curto orçamento me obrigou a ser mais limitante. O que não é de todo ruim, pois acaba-se descobrindo coisas interessantes, como por exemplo a sugestão de damasco sêco que minha querida amiga Maiaty sugeriu (ok, eu não gostei, mas isso é apenas meu gosto pessoal). Ou ainda que o fusili mais barato do mercado é uma porcaria. Que molho de tomate é tudo igual e compensa mil vezes mais comprar o barato extrato de tomate do que a mais cara Pomarola. Enfim, peguei metrô, trem (ah, a bela estação da Luz) e o ônibus à Paranapiacaba. O pouquinho que escrevi em meu diário foram as seguintes palavras:
“A tensão que se consta ao iniciar a jornada é muito menos sobre seus perigos; entre eles estão a ânsia de chegar logo; se algum item fora esquecido, como uma peneira – acabei de lembrar – mas é principalmente se estou seguindo o caminho certo. É tão estranho ter a liberdade de ir onde seu coração manda. Mas aí o trem começa a se mover e peregrinar pelas estações de seu trajeto, essas incertezas ficam para trás e tudo se torna mais calmo.
Me é de um prazer místico andar de trem. Só lamento profundamente que isso seja bem menos nobre e muito mais limitado no Brasil”
O problema de se fazer um solo é nunca ter tempo para nada! Há tanta coisa a ser feita que eu sempre acabo deixando o relato de lado. Estas palavras que você está lendo estou escrevendo cinco dias após a viagem (e eu espero que alguém vá ler isso aqui). Em tempo, cheguei à Paranapiacaba à noite, dei uma pequena avançada na mata e acampei por lá. No dia seguinte dei uma bela enrolada pois não sabia exatamente o que fazer da vida.
À tarde, “dei uma carona” para uma galera que estava a procura de uma cachoeira na mata. Os guiei até um ponto conhecido do Rio Moji e depois disso segui minha viagem: havia decidido subir o rio até sua nascente. A questão é que eu já sabia que sua nascente estaria em meio a cachoeiras no meio da mata e que me levaria até a ferrovia. Que eu iria passar debaixo de pontes altíssimas e ter um lindo visual. Rio acima, aqui vamos nós. Agora não seria mais uma simples trilha. Eu estava subindo o rio pelo próprio rio e não por uma trilha, e essa era uma tarefa nada fácil: subir nas pedras, atravessar lagos, machucar meus pés em fundos de pedra que não podia prever… um tanto perigoso para uma pessoa sozinha. E veio a chuva e com ela a promessa de escurecer o dia.
Armar acampamento debaixo de chuva não é a tarefa mais agradável do mundo. Você sabe que cada segundo a mais é mais água com a qual terá que dormir e arriscar-se à uma hipotermia e o trabalho de ter que esperar secar ou carregar um equipamento molhado (e muito mais pesado). E desta vez minha amaldiçoada Eureka não quis ajudar: a vareta quebrou, não tinha espaço suficiente para colocá-la, enfim, uma hora de briga pra levantar o acampamento. Me enfiei dentro da barraca com apenas meu saco impermeável de roupas secas, sleeping bag, isolante e os equipamentos eletrônicos. O resto, deixei do lado de fora, ainda dentro do mochilão, este devidamente protegido pela sua capa-caramujo.
Normalmente cozinho à noite, mas a minha Eureka não permite essa façanha: mancada do designer da tenda, mancada minha ao não percebr isso ao comprá-la (e não foi barata). Depois de um tempo consegui dormir, tomando o cuidado de não encostar o sleeping bag na poça d’água ao fundo da barraca. No meio do sono, numa dessas viradas de lado senti como se estivesse sobre um colchão d’água: a barraca estava praticamente flutuando sobre uma bela poça que se fez debaixo dela. A sensação de saber que você está molhado, sob chuva e sob a ameaça de perder o sono e ter uma possível hipotermia sozinho no meio da mata em que ninguém passa, a cinco dias de alguém notar que você teria sumido, não é lá muito agradável. E tentar dormir sob essa sensação é algo quase impossível. Coisa que eu só consegui, quando num determinado momento da madrugada (ou da manhã) senti que a chuva parou e que meu berço não flutuava mais.
No dia seguinte, um belo sol: ótima oportunidade para colocar tudo para secar sobre as quentes pedras, preparar a janta perdida na noite anterior e dar uns mergulhos no lindo lago logo acima. Eu já estava num ponto do rio a que ninguém tinha acesso. Então, desde a noite anterior, já não estava preocupado com roupas. Nadar nú é uma sensação deliciosa e acho que todo ser humano deve fazer um dia (banheira de motel não conta).
Ao alto e avante, sigo subindo o Rio Moji. E conforme vou evoluindo, ele vai se tornando cada vez mais vertical. Subo por rochas gigantescas, e vez ou outra faço uma pausa para um banho em alguma piscina natural. Em um de seus esperados encontros, tenho que virar à direita em um de seus afluentes para seguir seu curso original. Aí ele se fecha bem mais, tornando-se cada vez menor (a vantagem de subir um rio) e mais íngreme. Começo a ter que usar minhas técnicas de escalada e fazer maior uso dos meus bastões.
Depois de alguma caminhada já podia avistar as duas pontes da ferrovia. Ao fundo vejo a ponte da discórdia em que Latuff e eu voltamos na nossa última incursão à Paranapiacaba.
A subida torna-se cada vez mais íngreme e perigosa. Escalar de mochilão carregado, e sem os referidos equipamentos para isso, não é lá muito seguro. Mas o ímpeto de conhecer as entranhas de um lugar que me persegue espiritualmente fala mais alto. Tenho que conquistar essse lugar, conhecer seus segredos, e assim poder me conhecer. Aventurar-me, perder-me, apaixonar-me. Tudo isso com a compania de lindos leviatãs de ferro.
De insegura a escalada começa a ser tornar insana. Em certos trechos tenho que agarrar-me à precários arbustos, fendas nas rochas e confiar em apoios nada confiáveis. Tenho a impressão de estar chegando a um ponto em que não será mais possível progredir. E a neblina tomando conta da Serra, imitando o preâmbulo da chuva de ontem não me agrada. Pedra molhada é pedra inescalável. Tudo se fechou ao meu redor e agora eu estou escalando uma cachoeira confinada entre duas paredes. Paredes essas que levam a patamares que parecem muito confortáveis e que levam à ferrovia. Mas em nenhum lugar, como até pouco tempo parecia, existem acessos que levam a este piso superior.
Acho uma pequena queda d’água, de apenas um metro e meio, que não me permite progredir. Caí dela três vezes e prefiro não me arriscar a quebrar algum osso neste lugar isolado. Neste andar há uma pedra muito inclinada, que tem o tamanho pouco maior que minha barraca e um espaço horizontal com algumas pedras em que posso cozinhar. Hoje é dia 31, o tempo está fechando, é bom descansar e posso não encontrar outro platô como esse no próximo piso. Decido passar meu revéillon aqui.
Nessas aventuras, você sabe que um dia vai ter que acampar em lugares inóspitos, desconfortáveis. Mas ter que acampar toscamente em cima de uma pedra inclinada, do lado esquerdo uma parede de 3 metros e do lado direito outra de 1 metro não é algo que quero fazer novamente. “Essa noite não posso me apoiar na parede da barraca”, fiquei me repetindo continuamente. Se eu me apoiasse na parede da barraca, iria despencar com ela de 3 metros, provavelmente quebrar algum osso (e na minha anatomia aerodinâmica isso não seria dificil) e, de quebra, ser asfixiado pela barraca. E se apoiasse no outro lado, sairia rolando pela pedra envolto em minha tenda amarela, cair no córrego e sabe-se lá mais o quê. Mas a chuva não chegou, ainda tenho luz do dia para cozinhar (não seria seguro andar sobre essa pedra somente de lanterna) e não quero me assustar tanto com essas previsões macabras (só o suficiente para eu me lembrar de não me virar à noite).
Jantei meu padrão de revéillon: feijoada! Apesar dos problemas que me cercavam, eu até que estava bem: ainda não havia chovido, meu acampamento estava [precariamente] armado, tinha água até o final de minha existência e comida para mais uns três dias: não precisava me arriscar a nada. Só ter calma e paciência. À meia noite acordei um pouquinho e dei uma olhada para fora da barraca: dava para ver alguns flashes no céu, vindos do longe. Tranquilamente sentando na frente do meu computador, como estou agora, custa-me enxergar o quão incômodo foi estar lá. Mas li tantas vezes sobre essas situações e compreendi como é impossível para certas pessoas não se desesperar. Me perguntava se teria que ser resgatado de helicóptero, de rapel pela ponte abandonada (onde eles iriam ancorar a corda naquela ponte podre?), já estava até armando planos de como contatar o mundo exterior para minha busca. Seria espetacular sair dali pendurado num helicóptero, mas insuportável a vergonha de ser resgatado (ah, meu orgulho do tamanho de um bonde). Mas me confortava saber que estava tudo bem, eu não passava nem frio nem fome nem estava machucado. Só precisava de uma corda esticada, uma fita e um cordim para fazer prussik e subir pela corda.
Virei costumeiramente durante a noite, mas em momento nenhum me apoiei nas paredes da tenda. Sobrevivi à minha própria casa esta noite. Bem depois de clarear, botei a cabeça para fora e vi primeiro dia de 2008, que não me pareceu muito agradável: uma neblina pouco menor que a do dia anterior, mas ainda assim fazia parecer que o mau tempo dominava. Já que eu não tinha muita opção, resolvi virar de lado e dormir mais até o tempo parecer um pouco melhor. Algumas horas mais tarde resolvi levantar, e comer meu café da manhã (o padrão de todas as manhãs de todos meus acampamentos): pizza. Acho tão míope a visão que acampamento é sinônimo de Miojo: meu cardápio inclui sempre feijoada, fusili, risotos, legumes e pizzas. Aliás, sobre risotos, desta vez o orçamento não permitiu, mas num próximo eu vou comprar um risoto do fast-food italiano Spoleto. Nestes fast-foods de shopping a comida já vem quase sempre preparada em saquinhos, que é só aquecer. Basta negociar com eles a compra do prato predileto!
De volta ao acampamento, precisava saber se o tempo estava ruim somente onde eu estava ou no resto das geografias também (o microclima da Serra é diferente do clima do litoral e diferente do clima da planície também). Aproveitei a oportunidade para conhecer um pouco de radioamadorismo e conhecer o HT que o Latuff me emprestou. Como ele não tinha bateria, improvisei uma ligação com a bateria da minha câmera. Depois de ouvir algumas várias conversas em um bom tempo de radio-scan, fiquei ligado num bate-papo de radioamadores. Eu não tinha potência para transmitir, e enquanto não fosse uma emergência não o queria fazê-lo (ainda não tenho licença para uso deste transceptor). Uma frase me deu o maior alívio: com um sotaque tipicamente do interior um dos senhores disse que ali no litoral estava um calor infernal de 31ºC. Ufa, não precisaria esperar mais um dia ali para o tempo melhorar. Mas, como cada problema ao seu devido tempo, eu tinha um novo conflito: tentar subir mais, descer ou pedir resgate? Vamos por partes: eu não estava machucado, tinha comida para mais 3 dias, água infindável: não era uma emergência. Desescalar é muito mais dificil que escalar, então subir me parece a melhor opção. Só que nessa tentativa, de subir aquela besta queda d’água de 1 metro e meio, mesmo sem nenhum peso às cosats, levei mais alguns tombos e fui vencido. Posso ser insistente, mas não devo ser idiota: não dava para subir. Então, só restou uma alternativa, estava que eu estava evitando de toda a forma: a temida descida. Eu havia subido quedas d’água de mais de 3 metros, com muito custo, arranhões e quase queda.
Descendo com muito cuidado, planejando cada desescalada e descansando muito bem entre cada uma delas aos poucos fui revendo os passos que segui no dia anterior. Eram pelo menos 4 grandes quedas d’água, que variavam de 2 a 4 metros. Bem depois de ter deixado minha antiga morada para trás, pude ver que a neblina estava só na Serra mesmo e que agora havia um lindo dia de sol para caminhar. Saí das claustrofóbicas paredes, voltei para as pequenas quedas d’água, que agora eram uma brincadeira para descer, e finalmente cheguei àquele esperado encontro de afluente com o rio Moji. É um sentimento de tanta grandeza sair da trilha normal e enfrentar um rio, andar em meio a gigantes construções abandonadas. Sempre quis saber qual era a visão de uma pequena formiga ao caminhar pelas paisagens que para ela formavam as voltas de meu acampamento. É dentro deste sentimento tão ambíguo de grandeza e pequenes que eu me encontro quando ali estou.
Agora a viagem tomou um rumo mais normal, voltando a descer o rio como já o fizera antes. Desci até encontrar o lago no qual já acampei algumas vezes, incluindo o revéillon de 2006. Que diferença foi ter espaço, horizontalidade e paz para poder fazer minha janta calmamente. Dormi olhando para o céu, sem a proteção de chuva da barraca, estava quente e uma noite agradável.
Na manhã seguinte (do dia 2) estava ensaiando para acordar, quando peguei no sono de novo… então do lado de fora da barraca um homem muito parecido com meu pai estava olhando a barraca muito curiosamente, do lado de fora. Ele estava dando a volta em torno do acampamento, tentando compreender quem era esse maluco acampado sozinho lá. Me esforcei para ver se aquele homem era meu pai mesmo, me esforcei muito para olhar para o rosto dele… e este esforço se reverteu num susto que me fez acordar. Acordei olhando exatamente para o mesmo ângulo, cores e texturas da barraca do meu sonho, só que sem o homem lá. Lembro-me do “ah” de susto ao acordar. E de ter falado “caralho, como isso foi real”. Era como se apenas aquele homem tivesse desaparecido. Nunca tive algo tão surreal. Depois do susto me senti tão são quanto nunca senti… tive uma visão sozinho no meio do mato, sozinho por 4 dias e mantive a calma. Sou um sujeito muuuuito estável mesmo.
Como minhas pizzas, tomo meu suco de manga, lavo louça, guardo a roupa seca, armo a mochila. Esse ritual deve levar umas 3 horas, todo dia. Sozinho é tudo mais dificil: mais equipamento, mais peso a carregar, mais tarefas a executar sozinho, mais atenção a ser dada a cada mínimo detalhe: quando você está sozinho não há muita margem para erro. A descida pelo rio até Cubatão é uma velha conhecida, mas desta vez com bastante tempo para aproveitar cada laguinho no meio do caminho: caminhar um pouco, mergulhar, que vida. Sou uma pessoa de muita, muita sorte mesmo. Poder viver para fazer isso. Lembrei-me da minha mãe me criticando por sofrer tanto, fazer tantas cicatrizes me enfiando no meio do mato com peso às costas e muitas vezes debaixo de chuva. Só estando lá no meio para poder compreender que o sofrimento (depois do devido treinamento) é ínfimo perto da grandiosidade de espírito a que se chega ali.
Chegando em Cubatão já até conheço a saída que leva à casa do seu João, um senhor que vive sozinho numa simples cabana ao pé da Serra. O conheci na última vez que desci o rio, fazendo um treinamento de sobrevivência, cujo vídeo está para ser editado e postado no YouTube há um tempão (mas isso é outra história). Tomei o delicioso café feito na lenha e bati um bom papo com seu João. Aprendi novas coisas sobre aquele lugar e rumei para o pátio de chegada das composições que passaram tantas vezes por mim em tantos acampamentos.
Tenho que me beliscar continuamente, pensando “eu estou aqui”, quando eu sinto que sou o personagem de algum comercial de TV que mostra coisas que você nunca vai fazer, mas representam sonhos que todo mundo tem, como… pegar carona num trem de carga. Quem nunca quis uma vez na vida se aventurar assim? Pois eu havia feito. Estava a bordo de uma locomotiva de volta a Paranapiacaba.
Pude curtir e fotografar muito o caminho de volta, a bordo do meu querido leviatã de ferro. Passei sobre meu acampamento do revéillon, e que completude poder ter a vista que eu tanto fantasiei lá de baixo como seria.
Ao chegar, desci disfarçadamente da locomotiva e voltei à vila. Aproveitei para fazer algumas fotos, tomar uma Coca-cola (ah, que prazer incrível) e comer algo que não tivesse sido feito por mim. Eu estava sujo, machucado, fedorento mas inteiramente rejuvenescido.