Uma mulher, uma bicicleta e uma estrada

Viajar de bike é uma das experiências mais libertadoras do mundo de aventura, principalmente se você for mulher. O melhor é que só é preciso de uma bicicleta e uma estrada para ter o mundo aos pés

por em 22/Oct/2010
Revisado por: Lex Blagus
Fotos: Joana Rocha, Mario Amaya e Lex Blagus

Verônica Mambrini
Verônica Mambrini é a honorável revisora e colaboradora deste humilde blog. Quando não está entre seus livros e revistas, certamente estará pedalando em algum lugar por aí. E neste artigo ela conta toda essa sua relação de paixão intensa com a bicicleta

De pé, na porta de casa. A bicicleta está no meu lado, esperando paciente. A viagem já está acontecendo há tempos, na minha cabeça. Foi sonhada, desejada, planejada. E o momento em que eu penso: ?é agora, não tem volta? é quando eu zero o odômetro: começou.

Muita lama pela frente
Muita lama pela frente

Eu vou de bike porque gosto do silêncio dela, capaz de cruzar grandes distâncias passando quase despercebida. A bike carrega tudo para mim e deixa as costas e a cabeça leves. Vou voando. Em cicloviagens, praticamente zera a barreira entre os sexos. O que conta não é a força, nem a capacidade de orientação espacial. É muito mais a cabeça equilibrada e a persistência, junto com o planejamento. Técnica, quase nada. Vale mais a paciência. Cicloviagem é enduro consigo mesmo, e pouca gente agüenta. Às vezes o mais treinado dos trilheiros erra o cálculo, dosa mal o esforço, não agüenta a bagagem, se impacienta com as muitas horas de pedal, sofre com dores do corpo mal acostumado.

Pernas para quê te quero
Pernas para quê te quero

De bike, o tempo todo você calcula, ainda que intuitivamente. Precisa ter noção do tamanho da pernada do dia, do peso que vai carregar, do destino onde precisa chegar, quem vai ser o dono de bar com o ranguinho mais gostoso na janta, o pescador com peixe fresco e bom para você cozinhar seu jantar ou a hospedagem (seja mato, camping ou cama) onde vai repousar melhor e recuperar as energias para o dia seguinte. Essa bagagem psicológica é mais importante do que a física. Precisa internalizar essas medidas, deixá-las fluir naturalmente. O melhor da viagem é quando você já sabe o que tem que fazer sem pensar, e entrega a cabeça para sentir o vento, mergulhar no céu ou reparar nas pessoas e paisagens que vão ficando para trás.

Estrada de manutenção na Serra do Mar
A paisagem fica para trás, a lembrança não

Quando eu era criança, sonhava com aventura, de um gosto que nasceu de explorar quintais, trepar em árvores e ler livros. De ?A Ilha Perdida?, de Robert Louis Stenvenson,
a ?Coração de Onça?, de Ofélia e Narbal Fontes com seus livros de aventura que são dezenas, centenas. Leituras de menino que eu vivia com toda a força: quase nenhum de meus heróis era mulher. Meu imaginário fervia com piratas, florestas, uivos de bichos na madrugada, roncos de cachoeira gelada no banho da manhã e aventureiros com mentes inquietas, improvisando soluções e aprendendo a salvar a si próprios.

Cubatão
A gente nunca cresce; só mudam os brinquedos

Já crescida, bicicleta foi paixão tardia, mas fulminante. Coisa que descobri há uns 3 ou 4 anos, e que amo cada vez mais. Por ser menina, tem umas certas dificuldades, a começar pela mecânica da bike, que é um mistério que aprendemos do zero. Vai ficando simples com o tempo, mas começar na vida adulta é quase aprender um novo idioma. Vai por mim: meninas quase nunca são incentivadas a desmontar e montar coisas, entender a lógica de engrenagens, saber consertar sozinha. E bicicleta é o exercício mais puro e intenso da autonomia.

Lex adaptando um bagageiro na bicicleta
Vocês, meninos, cresceram fazendo isso

Outra coisa complicada é não saber onde é seguro para você. Diferente de outras modalidades no mundo da aventura, em que existem o mato, você e Deus, a bicicleta é das estradas e das cidades ? portanto, habitat dos homens. Não tenho medo de escuro, de solidão, de ladeira, de quilometragem. Mas tenho medo de topar com gente de má índole. Você nunca sabe com total certeza se há risco de estupro, de violências físicas, de agressões verbais, de extorsões. Mas só se combate esse medo caindo na estrada e tornando-a segura, quebrando estereótipos como o da mulher frágil com a força dos próprios punhos.

Estrada do Pico do Jaraguá
Feminina: sempre; frágil: nem pensar

A bike é barco, casa móvel, cockpit ? às vezes, é só uma bicicleta mesmo. O fato é que quem me conhece pensa logo nela, é quase uma metade que me torna centauro. Uma mulher de bicicleta, seja voltando do mercado ou partindo para uma viagem solitária, é uma cena tão sedutora que os olhares tortos pouco a pouco estão virando presentinhos, links de reportagens sobre bikes, livros, mimos. Tenho amigos que pedalam comigo (na cidade e na estrada), e muitos que nunca pedalaram se animaram até a experimentar. Acho que tenho muita sorte: nem meus acidentes fizeram as pessoas que me amam pedirem para eu deixar de bicicletar (e é fato: quem pedala, cai. E isso não é o fim do mundo).

Posando na av. Paulista
Somos uma só

Se você pegar sua bicicleta empoeirada na garagem, há grandes chances de ser mordida pelo mesmo bichinho que me pegou. Começa com uma ida à padaria e quando você se dá conta, começa a sonhar em cruzar o continente a pedal. Modalidades como as cicloviagens e os Audax (provas de longa distância que chegam a 1.200 km em que o que vale é completar, sem ranking de vencedores) são perfeitas para mulheres. Você começa no plano, bufa e xinga nas primeiras subidas, chora de raiva com a lerdeza de trocar os primeiros pneus, quebra a cabeça ajustando freios e câmbios, e segue pedalando, pedalando, até que olha para trás e vê que muito marmanjo não teve as manhas de continuar.

Mario Amaya faz uma foto em Ilha Comprida
Ilha Comprida: cumprida

Pequeno manual prático para aventureiras de bike:

  • Um grupo de amigos confiável é uma família que vai te preparar para o mundo. Procure-os: eles estão te esperando loucos pelas primeiras pedaladas juntos
  • Aprenda a se virar. Sempre aparece um cavalheiro gentil para fazer o serviço por você. Não deixe ele resolver seu problema, mas peça para aprender. Vale fazer cursos e workshops de mecânica de bike
  • Quase todas as recomendações para uma trip de aventura de mochila nas costas valem aqui: saiba primeiros socorros, organize equipamentos eficientes e esteja fisicamente preparado para carregá-los e saiba usar tudo que está levando
  • Tenha um plano B. Se possível, um plano C e um plano D. Além de garantir que você vai passar mais tempo curtindo do que resolvendo perrengues, a sensação de tranqüilidade melhora seu rendimento de forma visível
  • Existem motivos reais para ter medo e existem coisas que colocaram na nossa cabeça. Para entrar no mundo da aventura, uma moça precisa aprender a distingui-los e se preparar para enfrentá-los
  • Planeje e procure pessoas que fizeram viagens semelhantes. Troque ideias, peça informações. Nunca houve tantas ferramentas para colocar interessados em viagens de bicicleta em contato no Brasil, e acredite, há uma verdadeira multidão pedalando
  • Pedale em cada oportunidade disponível. Nem todo mundo pode usar a bike como meio de transporte, mas fica muito mais difícil acostumar o corpo se você só pedala de fins de semana. Hoje, eu posso passar cerca de 10 horas numa bike quase sem dores, e pedalo tranqüilamente no dia seguinte (isso sem treino! Apenas com meus 10 km diários de ida e volta do trabalho)
  • Uma das coisas mais gostosas das viagens de bike, e que nem sempre as trips de mochila te oferecem é a possibilidade de conhecer gente bacana. Há muitos Brasis escondidos no Brasil. Sair de bike é estar aberto a ouvi-las, e há uma grande chance de ser convidado para uma cervejinha ou café. Sem esse espírito de compartilhamento, nem saia de casa ?

Brunch de bike em Pinheiros
E quando você menos esperar, a bike já fará parte da sua vida

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25 comentários neste post

  • Jeff

    Ótimo post Verônica!

    E aproveito aqui para deixar um protesto:
    Anualmente a Polícia Militar vem a escola onde trabalho para fazer uma apresentação sobre segurança no trânsito, porém em nenhum momento, nestes últimos anos, ouvi eles comentando com as crianças sobre o respeito aos ciclistas e à sua segurança. Poxa, numa cidade (Mogi das Cruzes) com grande quantidade de ciclovias como esta, esse assunto deveria estar até mesmo no currículo escolar (exagero?)

    Abção

    • Vê Mambrini

      Jeff, não é exagero. Acho até que vale a pena entrar em contato com a PM e sugerir que incluam a bicicleta aí… se você quiser, tenho o contato de associações que podem ajudar nesse sentido, dando treinamento à PM. Quer?

    • Adriano

      Wow, fantástica matéria sobre o prazer que uma bike pode propor ao seu proprietário!

      (ainda) Não sou adepto à cicloviagem, mas sempre que posso levo minha bike no carro, quando viajo. A bike por uns bons anos foi meu principal meio de transporte: escola, trabalho, lazer, namoro, turismo…

      Sempre pedalei, desde muito criancinha, com aquelas rodinhas laterais. O “brinquedo” só aumentou de tamanho. Quando fiz 18 anos, comprei meu primeiro carro e um rack pra levar minha bike. Era engraçado os comentários dos amigos(as) dizendo que eu era o único da turma que depois de ter carro não abandonou a bike.

      Hoje, depois dos 30, pela sensação de liberdade que a bike sempre me proporcionou, comprei uma motoca e continuo me aventurando por aí. Só aumentaram as distâncias. A única coisa que sinto falta na moto é de um rack para a bike (risos).

      Ainda dou minhas pedaladas (beeeeem mais moderadas, sem aquele pique da juventude) e sonho em tentar uma cicloviagem.

      Quem sabe um dia!

      Sucesso!

      • Lex

        Bem, eu passei dos 30 e continuo na bike. Aliás, sua bike tem um grave problema que você precisa resolver: tem um carro embaixo dela. Não deixe de pedalar, nunca. Aliás, não deixe de se aventurar. Não importa se seus amigos não acompanham, ou você acha que não tem idade ou pique. Tenho certeza que você vai vier uma vida mais longa e feliz.

        valeu pelo comment, abraços!

  • Mário Neto

    Fiquei muito feliz de ver mais um post por aqui! Li na integra e compartilho todas as opniões com respeito a viagens de bike. Só fiz uma, até agora, mas a vontade é de fazer muitas mais! hehehe

    Abraços,
    Mário

    • Lex

      Bem, o blogus não morreu! Evitei usar o chavão “depois de um longo hiato…” porque acho que devemos ir logo ao que interessa, que é o post.
      Espero que o texto da Vê tenha lhe inspirado a fazer mais viagens!!
      abraços

      • Mario

        Blagus,

        Dando uma lida nuns posts antigos vi que você brincou em vender a Bivak I, ainda tem interesse em fazê-lo? Sei que não gostou dela, mas quero comprar um barraca para começar a acampar e ela talvez fosse uma opção legal para comprar usada, pelo peso e preço.

        Se tiver alguma proposta, é só mandar. hehehe

        Abraço,
        Mario

  • davi marski

    Excelente post, excelente matéria ! Só não me deu vontade instantânea de sair pedalando porque amanhã já vou fazer isso..rsrsrs ! Continue postando, seus textos são muito legais !

  • Ana Elisa Assunção

    Que lind texto! Me deliciei com a delicadeza das palavras!

    Fiz minha primeira cicloviagem na Chapada Diamantina. Éramos 5 amigos!

    Foi maravilhosa! Veja fotos no facebook.

    Parabéns!

  • Edson Luiz

    Oi Verônica.
    Estou lendo sobre cicloviagem no net (google) e lendo todos os relatos sobre o assunto. Deparei-me com o seu e como em outros, fiquei maravilhado. A bicicleta é uma maravilha também. Tenho meus 48 anos e estou prestes a fazer minha primeira cicloviagem de Brasília/DF a Blumenau/SC, por enquanto, só. Estou organizando um blog, que ainda não está pronto e peço, por obséquio, permissão para copiar o “Manual prático para aventureiras”. Gosto de boas, muito boas, excelentes e excepcionais idéias, seja de quem for. Seu blog terá um post no meu, se desejar. Um abraço caloroso. Edson.

  • Gabii

    Amei,
    Sou uma amante da bike desde que arranquei minhas rodinhas (aos 4 anos) não gosto de ficar longe da minha bike, mas ainda não tive a oportunidade de fazer um cicloturismo, mais ou menos quantos quilômetros por dia eu percorrendo dentro da cidade, posso arriscar para partir em um primeiro cicloturismo?

    • Lex

      Gabii, que bom que gostou. A Vê mandou hiper bem neste post, não me canso de lê-lo. A questão da quilometragem é muito relativa; você pode fazer uma cicloviagem comprida mas sem pedalar muito (fiz Cananéia-Curitiba este fim de ano e não pedalamos quase nada, muitos trechos de barco e trem no final) ou você pode fazer um trecho curto com subidas infernais. Mas tendo um ciclocomputador e vendo qual a média de quilometragem você faz aqui na cidade pode lhe servir de referência quando você tiver um roteiro cicloturístico à mão. Além disso, você pode procurar por um roteiro que lhe permita desistir no meio do caminho e voltar de ônibus de alguma cidade no meio do roteiro.

  • mar_ina

    to apaixonada por voce.
    ainda nao terminei de ler teu post.
    me arrepiei (muito. e mesmo) quando li:Mas só se combate esse medo caindo na estrada e tornando-a segura, quebrando estereótipos como o da mulher frágil com a força dos próprios punhos.

    com a força dos proprios punhos.

  • mar_ina

    terminei de ler.
    é lindo. adorei as dicas.
    já viajei viagem pequena mas nem tanto. e sem preparo nenhum. só o preparo do dia-a-dia que foi tudo de bom e mais. realização de sonho.
    já trabalhei como mecanica de bicicletas e comecei aprendendo. e amando. muito.

    • Verônica

      Oi, Marina. Que delícia seus comentários. Bora trocar ideias e combinar viagens. E que legal que você foi mecânica de bicicletas, é tudo de bom cair na estrada sabendo como a bike funciona, né? Mantenha contato.
      beijo

  • kaká

    fecho os olhos e logo me vem a lembrança da epoca de criança, nascida e criada no interior, ganhei minha primeira bike quendo tinha fiz meus 10 anos, que coisa gostosa, lembro como hoje, era um barra circular monark 9 enorme para meu tamanho ), mas pouco me importava, ia para o colegio ja pensando na hora de chegar em casa, pega minha magrela e ganhar o mundo, descobrir o novo e duto que estava me aguardando alem das fronteiras que vivia. a maioria dos meus amigos tinham bike, o tempo foi passando as distancias iam aumentando e minh aprimeira viagem de bike foi aso treze anos, andamos 38 km para passar o dia no pé de uma cachoeira lindissima, nossas maes nem imaginavam nessa nossaempreitada, pois sempre tinha a desculpa de estar indo passar o dia na roça de alguma amigo ali por perto.
    hoje tenho 33 anos, sempre que posso vou alie acola com a minha magrela, é um amor muito forte, qunado estou andando é como se voltasse a ser uma criança pois a sensação é muito gostosa.

  • Ada

    Adorei o post…é incentivador…em Julho parto pra minha primeira viagem de bike…a principio sozinha, mas estou tão animada, tão confiante que vai dar tudo certo e muito feliz…
    Primeiro a estrada real (Caminho dos Diamantes…) depois em setembro o caminho de santiago …e depois o mundo, quem sabe…
    Bom saber que existem mulheres com os mesmos desejos e sonhos que os meus (não sou tão louca…hehehe) e que colocam eles em prática.
    Boas pedaladas sempre!!!

    • Lex

      Olá Ada!
      Muito inspiradora a sua coragem. Mulheres sozinhas são figuras raras, mas elas existem e estão por aí. E eu tenho o orgulho de conhecer algumas delas.
      Keep up e uma excelente viagem!!
      beijos

  • Ivan

    Essa minina tem rodinhas no pé mesmo… Parabéns pelo post e que continue sempre pedalando.

    Abs

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