técnicas
Uma mulher, uma bicicleta e uma estrada
por Vê Mambrini em 22/Oct/2010, sobre relatos e técnicas
De pé, na porta de casa. A bicicleta está no meu lado, esperando paciente. A viagem já está acontecendo há tempos, na minha cabeça. Foi sonhada, desejada, planejada. E o momento em que eu penso: ?é agora, não tem volta? é quando eu zero o odômetro: começou.
Eu vou de bike porque gosto do silêncio dela, capaz de cruzar grandes distâncias passando quase despercebida. A bike carrega tudo para mim e deixa as costas e a cabeça leves. Vou voando. Em cicloviagens, praticamente zera a barreira entre os sexos. O que conta não é a força, nem a capacidade de orientação espacial. É muito mais a cabeça equilibrada e a persistência, junto com o planejamento. Técnica, quase nada. Vale mais a paciência. Cicloviagem é enduro consigo mesmo, e pouca gente agüenta. Às vezes o mais treinado dos trilheiros erra o cálculo, dosa mal o esforço, não agüenta a bagagem, se impacienta com as muitas horas de pedal, sofre com dores do corpo mal acostumado.
De bike, o tempo todo você calcula, ainda que intuitivamente. Precisa ter noção do tamanho da pernada do dia, do peso que vai carregar, do destino onde precisa chegar, quem vai ser o dono de bar com o ranguinho mais gostoso na janta, o pescador com peixe fresco e bom para você cozinhar seu jantar ou a hospedagem (seja mato, camping ou cama) onde vai repousar melhor e recuperar as energias para o dia seguinte. Essa bagagem psicológica é mais importante do que a física. Precisa internalizar essas medidas, deixá-las fluir naturalmente. O melhor da viagem é quando você já sabe o que tem que fazer sem pensar, e entrega a cabeça para sentir o vento, mergulhar no céu ou reparar nas pessoas e paisagens que vão ficando para trás.
Quando eu era criança, sonhava com aventura, de um gosto que nasceu de explorar quintais, trepar em árvores e ler livros. De ?A Ilha Perdida?, de Robert Louis Stenvenson,
a ?Coração de Onça?, de Ofélia e Narbal Fontes com seus livros de aventura que são dezenas, centenas. Leituras de menino que eu vivia com toda a força: quase nenhum de meus heróis era mulher. Meu imaginário fervia com piratas, florestas, uivos de bichos na madrugada, roncos de cachoeira gelada no banho da manhã e aventureiros com mentes inquietas, improvisando soluções e aprendendo a salvar a si próprios.
Já crescida, bicicleta foi paixão tardia, mas fulminante. Coisa que descobri há uns 3 ou 4 anos, e que amo cada vez mais. Por ser menina, tem umas certas dificuldades, a começar pela mecânica da bike, que é um mistério que aprendemos do zero. Vai ficando simples com o tempo, mas começar na vida adulta é quase aprender um novo idioma. Vai por mim: meninas quase nunca são incentivadas a desmontar e montar coisas, entender a lógica de engrenagens, saber consertar sozinha. E bicicleta é o exercício mais puro e intenso da autonomia.
Outra coisa complicada é não saber onde é seguro para você. Diferente de outras modalidades no mundo da aventura, em que existem o mato, você e Deus, a bicicleta é das estradas e das cidades ? portanto, habitat dos homens. Não tenho medo de escuro, de solidão, de ladeira, de quilometragem. Mas tenho medo de topar com gente de má índole. Você nunca sabe com total certeza se há risco de estupro, de violências físicas, de agressões verbais, de extorsões. Mas só se combate esse medo caindo na estrada e tornando-a segura, quebrando estereótipos como o da mulher frágil com a força dos próprios punhos.
A bike é barco, casa móvel, cockpit ? às vezes, é só uma bicicleta mesmo. O fato é que quem me conhece pensa logo nela, é quase uma metade que me torna centauro. Uma mulher de bicicleta, seja voltando do mercado ou partindo para uma viagem solitária, é uma cena tão sedutora que os olhares tortos pouco a pouco estão virando presentinhos, links de reportagens sobre bikes, livros, mimos. Tenho amigos que pedalam comigo (na cidade e na estrada), e muitos que nunca pedalaram se animaram até a experimentar. Acho que tenho muita sorte: nem meus acidentes fizeram as pessoas que me amam pedirem para eu deixar de bicicletar (e é fato: quem pedala, cai. E isso não é o fim do mundo).
Se você pegar sua bicicleta empoeirada na garagem, há grandes chances de ser mordida pelo mesmo bichinho que me pegou. Começa com uma ida à padaria e quando você se dá conta, começa a sonhar em cruzar o continente a pedal. Modalidades como as cicloviagens e os Audax (provas de longa distância que chegam a 1.200 km em que o que vale é completar, sem ranking de vencedores) são perfeitas para mulheres. Você começa no plano, bufa e xinga nas primeiras subidas, chora de raiva com a lerdeza de trocar os primeiros pneus, quebra a cabeça ajustando freios e câmbios, e segue pedalando, pedalando, até que olha para trás e vê que muito marmanjo não teve as manhas de continuar.
Pequeno manual prático para aventureiras de bike:
- Um grupo de amigos confiável é uma família que vai te preparar para o mundo. Procure-os: eles estão te esperando loucos pelas primeiras pedaladas juntos
- Aprenda a se virar. Sempre aparece um cavalheiro gentil para fazer o serviço por você. Não deixe ele resolver seu problema, mas peça para aprender. Vale fazer cursos e workshops de mecânica de bike
- Quase todas as recomendações para uma trip de aventura de mochila nas costas valem aqui: saiba primeiros socorros, organize equipamentos eficientes e esteja fisicamente preparado para carregá-los e saiba usar tudo que está levando
- Tenha um plano B. Se possível, um plano C e um plano D. Além de garantir que você vai passar mais tempo curtindo do que resolvendo perrengues, a sensação de tranqüilidade melhora seu rendimento de forma visível
- Existem motivos reais para ter medo e existem coisas que colocaram na nossa cabeça. Para entrar no mundo da aventura, uma moça precisa aprender a distingui-los e se preparar para enfrentá-los
- Planeje e procure pessoas que fizeram viagens semelhantes. Troque ideias, peça informações. Nunca houve tantas ferramentas para colocar interessados em viagens de bicicleta em contato no Brasil, e acredite, há uma verdadeira multidão pedalando
- Pedale em cada oportunidade disponível. Nem todo mundo pode usar a bike como meio de transporte, mas fica muito mais difícil acostumar o corpo se você só pedala de fins de semana. Hoje, eu posso passar cerca de 10 horas numa bike quase sem dores, e pedalo tranqüilamente no dia seguinte (isso sem treino! Apenas com meus 10 km diários de ida e volta do trabalho)
- Uma das coisas mais gostosas das viagens de bike, e que nem sempre as trips de mochila te oferecem é a possibilidade de conhecer gente bacana. Há muitos Brasis escondidos no Brasil. Sair de bike é estar aberto a ouvi-las, e há uma grande chance de ser convidado para uma cervejinha ou café. Sem esse espírito de compartilhamento, nem saia de casa ?