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Solo

por em 27/Nov/2009, sobre técnicas

Quando comecei minhas trilhas eu simplesmente não tinha com quem ir ou a agenda dos meus amigos não batia com a minha. Mesmo se nós encontrassemos boas oportunidades em sites como Fly.com, ou em algum outro lugar, não adiantaria pois a agenda continuaria não conciliando. Não aceitava deixar de me aventurar por causa dos outros, então enfiei o mochilão as costas e saí trilhando por aí. Em qualquer manual de aventura, vai estar estampado em letra de forma “nunca aventure-se sozinho“, seguida de uma lista gigante de pontos positivos para se trilhar em grupo. Neste post vou na contramão. Direi as vantagens de “solar” e contarei a minha experiência sobre esse polêmico modo de excursionar da qual continuo sendo adepto.

Segurança

É a primeira coisa sobre a qual algumas pessoas perguntam e outras bradam contra. É comum nestas horas eu questionar o conceito de perigo, especialmente para que mora numa grande metrópole. No agreste temos um risco controlado: eu sei como uma cobra se comporta, eu só vou quebrar a perna se eu inventar de pular de um penhasco e só vou morrer afogado se eu me jogar num rio sem saber nadar. Pense bem, você está sozinho no meio do mato, vai mesmo ficar se arriscando? Você certamente será (muito) mais cuidadoso ao saber que, ao mínimo erro, poderá não voltar nunca mais para casa. Se você tem consciência dessa fragilidade, a viagem será paradoxalmente mais segura. Comece então com roteiros fáceis e não tenha vergonha em voltar para casa sem cumprir o trajeto completo. Você precisa ter 200% de certeza que é capaz de fazer aquele roteiro. Já voltei várias vezes pensando que é bom estar vivo para tentar novamente. Aprendi isso nos livros de alta montanha que contam histórias de desastres com mortes por pura ambição. E não é gostoso explorar? Se seu roteiro não deu certo, a sua viagem certamente deu. O objetivo tem que ser ir, e não chegar.

Acampado numa pedra em uma cachoeira

Acampado numa pedra em uma cachoeira

Solidão

Além do fator segurança, algo que as pessoas me questionam bastante é sobre a solidão. Muitos já me disseram que não suportariam ficar só. É bem mais simples do que parece, pois há tanta coisa para se fazer! Na viagem solo você precisa se virar: armar o acampamento, cozinhar, lavar a louça, fazer café da manhã, fechar a mochila. Não tem moleza. E nisso também não sobra tempo para quase nada: meu maior arrependimento é quase nunca escrever em meu diário ou perder ótimas oportunidades de foto (confesso que uma camerazinha point-and-shoot às vezes faz falta). Muitas vezes você está com a agenda apertada ou cansado demais para essas atividades. Somente sobra tempo se o clima lhe impede de sair da barraca ou se você fez uma pausa estratégica de um dia a mais no meio de uma expedição maior.

Milhares de coisas para fazer pela manhã

Milhares de coisas para fazer pela manhã

Quando fiz meus primeiros solos, não estava acostumado a ficar tão só. Durante a caminhada eu elegia algum amigo ou a namorada que ficou em casa como compania imaginária, e bolava conversas pois não conseguiria ficar em silêncio. Achava que estava ficando louco, paranóico, mas com o tempo aprendi a ficar realmente sozinho. Hoje eu não converso com mais ninguém, a não ser comigo mesmo. Sei o que é estar só, e apesar do peso desta palavra não é algo ruim. Estar só é necessário. Nosso modo de vida impõe muita interação social; mas para estar em sintonia com as demais pessoas você precisa estar em sintonia consigo mesmo. E, para mim, só a imersão em uma viagem solo pode proporcionar isso.

Uma das poucas vezes em que escrevi no meu diário

Uma das poucas vezes em que escrevi no meu diário

Interação

O parágrafo acima foi escrito considerando um solo para um trilha isolada. Mas considerando-se os momentos em que há algum sinal de civilização, ou mesmo para as viagens solitárias em ambientes mais frequentados, a interação social é muito maior. Explico-me: quando sozinho você invariavelmente irá conversar mais com as pessoas ao redor, especialmente os habitantes locais. A necessidade de conversar é maior e isso abre algumas portas. Quando você está num grupo de pessoas nem sempre há essa oportunidade.

Fazendo amizade com a criançada da comunidade de pescadores de uma praia isolada

Fazendo amizade com a criançada da comunidade de pescadores de uma praia isolada

Baixo impacto ambiental

Essa é indiscutível: sozinho você quase não fará barulho, suas pegadas serão menores assim como a área de acampamento e vai gerar menos lixo. Só é necessário mais atenção pois é mais provável que um animal não te veja; então atenção redobrada.

Imersão

A experiência como um todo é amplificada. Você presta mais atenção em cada detalhe pois você precisa estar atento, afinal, você está sozinho. A noite prestará mais atenção nos barulhos da mata, ficará atento a pegadas de onça ou ao rastro de uma cobra. Lembre-se que corujas adoram pregar sustos, especialmente à noite.

Embrenhando-me na mata

Embrenhando-me na mata

Autoconhecimento

Lá estava eu subindo uma trilha na Serra do Mar. Logo a frente, vi algo se mexendo e logo concluí que era uma pessoa me esperando. Parei, gelado. E a pessoa ali ao longe, mexendo-se e me aguardando. Eu queria correr, mas se eu o fizesse com trinta quilos de equipamentos nas costas certamente seria alcançado. Não podia largar minha mochila com tanto equipamento comprado com sacrifício no meio do mato e sair correndo. Mesmo se eu o fizesse, ao chegar na civilização, como iria explicar? Que eu saí correndo de medo do meio do mato? Então decidi seguir em frente. Descobri que era um galho se mexendo. E olhando logo mais a frente, também parecia haver uma pessoa. E percebi que meu cérebro se dividia em dois: uma parte assustada, que transformava sombras abstratas em perigos e a outra que sabia que não fazia sentido nenhum ter uma pessoa me esperando ali, no meio da madrugada, no meio do mato. Pude compreender perfeitamente a mecânica de uma alucinação. E pouco tempo depois comecei a analisar as peças que parte de minha mente me pregava. Aprendi a distinguir os medos. Hoje essas alucinações não acontecem mais, às vezes sinto saudades, era divertido.

Percebi também que o cansaço físico atrapalha as decisões. Ao esforçar demais o corpo, fica-se irritado e seu poder de decisão é prejudicado. Saber disso foi muito útil em Paraty, em que um simples descanso de 15 minutos me permitiu ler meu mapa e tomar uma decisão acertada que me tirou de um lugar onde não havia água para passar a noite. Conhecer-se muito bem é uma excelente ferramenta de sobrevivência.

Pausa para descansar e comer uma fruta

Pausa para descansar e comer uma fruta

Introspecção

Se você é uma pessoa espiritualizada, certamente ficará mais. Essa é uma atividade individual que só vai melhorar sua concentração. Os solos me ajudaram em meus sonhos lúcidos, mas só foi possível atingir o nível correto de relaxamento depois de muitas viagens.

Mais um reveillón que passei sozinho no mato

Mais um Revéillon que passei sozinho no mato

Iniciando

Essa não é uma atividade bem compreendida, então não espere apoio de ninguém. As pessoas com as quais irá conversar no caminho (ou mesmo antes da viagem) não vão compreendê-lo e (por uma razão muito nobre na concepção delas) irão fazer o possível para que não fique sozinho. Um amigo meu certa vez foi me buscar de carro no Dib. Não espere compreensão, apenas vá, se é o que seu coração manda. Converse sobre seus planos com alguém de confiança e deixe seu roteiro e planos de viagem com essa pessoa. Se possível faça checkpoints, em que em determinados momentos você mandará um sinal de ok (SMS é uma ótima ferramenta para manter sua privacidade). Claro que isso depende da disponibilidade de sinal.

Silêncio para contemplar a grandeza da natureza

Silêncio para contemplar a grandeza da natureza

A afirmação que eu precisava encontrei em alguns poucos livros e os que mais me encorajaram foram sobre as viagens transoceânicas solo do Amyr Klink. Há pouco também li o livro da brasileira que atravessou o Atlântico sozinha num veleiro. Certamente há outros bons livros sobre essas histórias de coragem, determinação e planejamento correto.

Se você ainda não está preparado para uma viagem dessas, escolha um lugar bastante seguro que seja possível ir num dia e voltar no outro. No meu caso, há alguns anos atrás, ia na Pedreira abandonada do Dib em Mairiporã. Acampava lá e voltava no dia seguinte. Sem caminhada, sem carregar mochilas cheias de equipas e nem por muitos dias. Apenas um jantar num lugar mais longe. Também era excelente para testar meus equipamentos recém adquiridos: barraca, fogareiro, sleeping bag. Eu também costumava fazer isso para testar a mim mesmo antes de uma viagem maior. Se algo desse errado, não seria uma questão de vida ou morte não dormir ou passar um pouco de fome por uma noite.

Mais uma deliciosa refeição no mato

Mais uma deliciosa refeição no mato

Se você não é tão antissocial quanto eu, poderá se prepapar para o solo nas suas viagens em grupo! Com um roteiro claramente definido, você pode sair com um dia (ou algumas horas) de antecedência aos seus amigos. Se algo lhe ocorrer, a ajuda chegará em breve.

Planejamento é mais do fundamental, é obrigatório. Quais são os principais itens necessários a um solo no mato?

Navegação

No meu primeiro solo, andava com um caderninho de notas e ia anotando todas as bifurcações e pontos relevantes em que passava. Como medida de contingência, num cantinho fora do alcance de visão de qualquer pessoa, fazia uma seta com pedrinhas para o lado escolhido. Caso eu perdesse meu caderninho de notas, teria um backup para fazer o caminho de volta. Sempre me indaguei como que as pessoas se perdem na mata, se para mim era tão natural observar e anotar tudo. Cheguei a conclusão que eram pessoas completamente despreparadas, que estão interessadas somente no barato da trilha sem prestar atenão no próprio caminho. Com isso, defendia mentalmente a segurança da caminhada solo.

Solo no Morro do Pinga que eu nunca consegui concluir

Solo no Morro do Pinga que eu nunca consegui concluir

Logo no meu segundo solo passei a usar carta topográfica, bússola e GPS, estudados previamente em casa. Hoje eu sugiro ler o tão citado livrinho de orientação do Sergio Beck ou qualquer outro bom livro a respeito (que não fale somente de GPS, mas de navegação como um todo). Na época era tudo emprestado, mas hoje é bem mais barato adquirir um GPS e uma boa bússola. Tenha sempre a carta topográfica do local explorado e lembre-se que no meio da mata não há postos de informações turísticas e que você depende unicamente de… você mesmo!

Equipamento

O equipamento adequado é caro, mas é ele que vai permitir você ir mais longe. E, obviamente, adquirir qualquer equipa requer horas de estudo e alguns testes de campo. Já usei meus bastões de caminhada na cidade e fiz janta com meu fogareiro. Nunca use nada pela primeira vez na viagem! Lembre-se que sua vida depende de uma headlamp, fogareiro ou isolante térmico. Seus equipas precisam ser os mais confiáveis possívels. Improvisação será necessária em algum momento, então não improvise com equipamentos que requerem confiabilidade. E leve alguns itens para manutenção, como silvertape, uma cordinha resistente e abraçadeiras plásticas.

Em Paraty, 5 dias de solo e record em excesso de peso

Em Paraty, 5 dias de solo e record em excesso de peso

Um recurso interessantíssimo que está na minha lista de aquisições é um localizador. É um aparelho com quatro botões: liga/desliga, ok, não-ok e socorro. Ele é um GPS com um transmissor via satélite que durante a jornada você vai mandando sinais de ok. Quem está acompanhando sua viagem remotamente poderá ver no Google Earth os pontos exatos pelos quais está passando e se você mandar um sinal de não-ok, essa pessoa poderá tomar atitudes previamente combinadas, sabendo exatamente sua localização. Recurso indispensável ao solista.

Plano de contingência

Sozinho na mata, não dá para chorar e pedir para sair. Se algo der errado, você terá que achar uma solução. Para cada decisão que você tomar, terá que pensar o que fazer se esta estiver incorreta. E nada de improvisações, o plano de contingência deve ser sólido. A técnica das pedrinhas citadas acima é um excelente exemplo.

Chuva lá fora e eu sequinho aqui dentro

Chuva lá fora e eu sequinho aqui dentro

No meu último solo, tive que pular de uma cachoeira em um cânion de onde certamente não teria como voltar dado a altura de suas paredes. Eu ralhei comigo mesmo pois sabia que não havia contingência ali e eu teria que seguir em frente. Mas logo a frente havia outra cachoeira gigante (80 metros) que não era possível pular. Minha sorte foi saber navegação, me embrenhar na mata e conseguir voltar a base da primeira cachoeira. Foi sorte, não planejamento. Não cometa o mesmo erro.

Fique de olho em quanto de luz do dia ainda há disponível e 3 horas antes de escurecer comece a observar locais passíveis de acampamento e esteja com suas reservas de água cheias. Não se sinta incomodado em não atingir determinado ponto no dia desejado (como uma praia ou topo da montanha) e curta seu acampamento forçado, descanse. Já acampei desta forma inúmeras vezes e foi bem gostoso acordar no meio da mata fechada, devidamente descansado e apto a tomar boas decisões.

Acampamento forçado. Mas não tão forçado assim

Acampamento forçado. Mas não tão forçado assim

Serenidade

Render-se ao desespero é o fim de tudo. Em um solo a situação é mecânica: simplesmente não dá. Lembre-se da história que contei acima, das sombras que pareciam uma pessoa. Sim, eu me borrei de medo, mas simplesmente não havia o que fazer. Fui obrigado a enfrentar a situação. E enfrentando esses pequenos desafios que eu pude me treinar para ser mais calmo.

Em caso de problemas, a primeira coisa que você precisa perguntar é “quanto tempo eu tenho disponível para tomar uma decisão?” Quanto mais tempo você tiver para ponderar, mais acertada será (mas não necessariamente correta). Dependendo da sua quantidade de tempo, você até pode sentar e comer uma barrinha de cereal para pensar sobre o assunto. Se você se enfiou numa situação em que você tem segundos para decidir, e saiu vivo, é hora de começar a prever melhor essas situações. Esbravejar e sair cortando a mata toda no facão não resolve nada, só prova que você é macho bagarai. As soluções quase sempre têm que ser intelectuais, pois esforço você já está fazendo carregando aquele monte de tralhas.

Nível avançado

Com a experiência a coisa fica divertida. Já não há mais tanta insegurança nas decisões tomadas, passa a ser natural estar sozinho e a noite você não fica paranóico com os barulhos da mata e dos animais silvestres ao seu redor. Planejará viagens mais longas e belas, com risco relativamente baixo e conseguirá aproveitar e até mesmo gostar de coisas que o aterrorizavam (como o barulho de uma árvore ao cair a noite). Aprenderá a ser honesto consigo mesmo e respeitar-se. E quando isso ocorrer, perceberá que passou a respeitar muito mais a tudo ao seu redor.

“Quando o homem está só diante da grandiosidade da natureza é que ele está verdadeiramente nú”

Bons solos!

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