Expedição na ferrovia funicular abandonada
Dando seguimento ao treinamento da minha querida pupila Kad Carol, finalmente fizemos toda a ferrovia funicular abandonada, até Cubatão. Foram pelo menos 3 incursões (com Latuff, solo e com a Kad) até lá tendo que voltar. Pena que o mau tempo não ajudou muito e tivemos que correr. Mais uma vez, apresento os relatos escritos […]
por Lex em 19/May/2008
Com a presença de: Kad
Revisado por: Vê Mambrini
Dando seguimento ao treinamento da minha querida pupila Kad Carol, finalmente fizemos toda a ferrovia funicular abandonada, até Cubatão. Foram pelo menos 3 incursões (com Latuff, solo e com a Kad) até lá tendo que voltar. Pena que o mau tempo não ajudou muito e tivemos que correr. Mais uma vez, apresento os relatos escritos na própria trip, à mão, por Kad:
30/04/2008
?Encontramo-nos na Livraria Cultura, eu com toda a sede do mundo, mesmo depois de só quatro dias da nossa última trip. Após o reencontro cheio de novidades e esperanças, andamos rumo ao mercado e o frio batia doído e gelado em nós. Sabíamos que o risco de estar um tanto mais frio em Paranapiacaba era um tanto grande. Tentamos prever o clima que nos esperava, mas se tratando daquele lugar isto era impossível. Arrumando as mochilas, o constante medo de perder o último trem de novo ou esquecer algum detalhe era grande. Enchemos as malas, saímos da casa do Lex às 23h40 (quase a mesma hora da outra vez) e chegando no meio do caminho já sabíamos que não conseguiríamos pegar o último trem.
Fomos em direção ao Terminal Pq. Dom Pedro, fazer a mesma via sacra da outra vez. Chegando lá, o rapaz do terminal disse que poderíamos pegar um ônibus até a Avenida do Estado para chegarmos mais rápido. Descemos no meio do caminho, mas o lugar era ermo e assustador, nenhum ônibus passou por nós; e o que passou, o paramos e perguntamos ao motorista como faríamos para chegar. Ele nos deu uma carona até o caminho mais próximo, andamos e decidimos pegar um táxi até o Sacomã, já estava perto. Chegando no Terminal, depois de certo tempo Lex se deu conta de que havia esquecido o par de bastões no táxi, bastões que haviam feito sucesso naquela noite (nos pararam para perguntar onde Lex iria esquiar… clássico!). Lex meio bravo demorou para se conformar com a perda, e eu estava torcendo para que ele não se chateasse justo no começo da trip. Tomamos um café e fomos esperar o ônibus que sairia as 2h10. Entramos no ônibus que estava lotado, todos olhavam para nós assustados, pensando onde iríamos uma hora daquelas. Passado o susto de todos, fomos conversando até Ribeirão Pires, escutando um sertanejo no bus, coisa de interior! Chegando em Ribeirão, combinamos com o taxista um preço até Paranapiacaba, ele também nos olhou meio desconfiado, mas aceitou nos levar, no caminho ele conversava bastante e falava sobre a constante “fog” de Paranapiacaba, só para variar disse que éramos corajosos por ir para lá aquela hora.
Descemos com o coração a mil. O tempo em Paranapiacaba variava e começamos nossa jornada às 4h15. Passamos por uma ruela entre as casas, a luz de Paranapiacaba é linda à noite e misturada à neblina nos passou um clima de horror total. Os feixes de luz amarela cortando a neblina remetem a um cenário de filme à la Zé do Caixão.
Chegamos na trilha, passamos o primeiro túnel inebriados. Era muito escuro mesmo com a head lamp, assustava um pouco. Decidimos subir o morro ao lado do final do túnel para ir até a trilha onde acamparíamos aquela madrugada, mas na subida não havia trilha, fomos passando e nos agarrando aos matos e arbustos, foi uma subida alucinante; a mochila extremamente pesada, o corpo cansado, quente e úmido aparentava se entregar a qualquer momento. Um misto de medo, emoção e desespero me acompanharam. A subida foi caótica pois a terra estava molhada e havia o risco de rolar morro abaixo com a mochila. Quando não mais agüentava, Lex me avisou que havia pisado em terra firme, fiquei extasiada e arrumei forças para terminar a subida. Achamos nosso ponto de acampamento perto de uma cachoeira, nessa hora já estava garoando forte, e nós dois cansados teríamos que arrumar nossa “casa” ainda. Lex cuidou da barraca e eu das mochilas, quando entramos na barraca já estava amanhecendo, conforme havíamos combinado eu tinha que fazer nosso “almo-janta”, e acabamos de comer com o dia claro (umas 6h30).
01/02/2008
Acordamos acabados às 13h, e quando olhamos para fora, o tempo estava horroroso. Decidimos descansar nesse dia, fizemos uma omelete, o tempo estava lindo apesar da cerração. Estava escuro, garoando e uns 16ºC na hora em que eu estava escrevendo. Estava com minha head lamp e Lex dormia. De madrugada, quando eu me mexi no saco de dormir, Lex me disse para ficar calada e não me mexer, havia um gambá dentro da panela de comida, do lado de fora da barraca!
02/05/2008
Passamos o dia todo na barraca de novo por culpa do mau tempo que nos impedia de continuar a trip. Como não havia o que fazer, fui preparar um omelete no capricho, com direito a cebolinha, bacon e outros, mas um pequeno acidente me fez derrubar tudo no chão, minha havaiana queimou no fogareiro porque havíamos decidido a fazer um corta-vento (tragicômico!), depois de quase chorar pela grande perda, partimos para a pizza que também ficou deliciosa. Descansamos e conversamos quase o dia todo já que não havia o que fazer. Estava garoando muito e Lex estava dormindo na hora em que eu estava escrevendo no nosso diário, eu estava com uma sensação indescritível, um misto de felicidade, gratidão e confusão. Como havia dormido pouco, decidi descansar.
Passamos o dia inteiro na barraca, a chuva não deu nenhuma trégua, estávamos receosos de acabar a benzina do fogareiro porque teríamos que ir embora mais cedo já que o tempo não melhorava também. Nesse dia acordamos com a barraca inundada, tivemos que fazer uma limpeza completa. Nesse dia, com a barraca limpinha (aquela altura já parecia nossa casa.. hehehe), deu para descansar e pensar na vida, ficamos a maior parte do tempo calados ou dormindo. Estava escuro na hora que eu escrevia e Lex (pra variar) dormia como uma criança. Quando ele acordou, eram umas 22h, estávamos profundamente entediados e um pouco estressados. Quando olhamos para fora, vimos que o tempo havia começado a melhorar. Felizes com a novidade, fomos para fora, levamos nossos sacos de dormir e fomos bivacar em uma parte estreita que dava uma vista noturna maravilhosa para Cubatão. Lex quase rolou morro abaixo (hehehe) mas demos um jeito e aquela seria a que considero uma das noites mais mágicas da minha vida, tudo era perfeito ali, aquele lugar, a situação, o som do vento, o céu estrelado e limpo, para mim era inacreditável estar passando por aquilo. Naquele momento para mim a terra parou e eu me senti a pessoa mais completa do mundo, eu estava ouvindo Moby e Prince no Mp3, o que me fez viajar mais longe ainda. Como estava muito frio, voltamos para a barraca, e dormimos.
03/05/2008
Quando acordamos estava um dia inacreditavelmente lindo, ficamos extremamente felizes, e como havia a possibilidade de seguirmos viagem e estávamos quase sem combustível, Lex decidiu ir até a vila comprar algum. Eu fiquei lá arrumando as mochilas e quando Lex voltou nos trouxe o maravilhoso querosene e duas coca-colas geladas. Isso nos deu ânimo e seguimos nosso caminho. Lex sofreu um pequeno acidente no morro que estávamos descendo, ficamos preocupados, mas ele conseguiu trilhar. Passadas algumas pontes extremamente podres (algumas com raízes em cima), achamos uma construção mais recente que serviria de abrigo para nós aquela noite (de sábado para domingo). O único detalhe foi que Lex não quis acampar dentro da construção, e sim em cima dela. Tive uma série de problemas com a subida, enquanto ele subia como uma lagartixa (uns 2,5 a 3m de parede). Passados os problemas, montamos acampamento e tivemos uma noção do que nos esperava aquela noite, chegamos na hora certa, vimos o anoitecer estáticos na barraca com aquela visão divina do vale à nossa frente. Lex fez uma comida deliciosa, jantamos cansados e olhando a noite perfeita. De madrugada acordamos com o barulho ensurdecedor do vento (mais parecia um tornado) e a sensação ali era de estar dentro de um balão em pleno voo.
04/05/2008
Amanheceu um dia lindo, fiquei um bom tempo olhando as montanhas enquanto Lex dormia, e quando fechei os olhos, ele me pediu a câmera e tirou uma das melhores fotos da minha vida. Arrumamos acampamento, continuamos a jornada do nosso último dia ali. Fomos curtindo a paisagem, transpassando caminhos de aranhas gigantescas, mais pontes podres (uma pior que a outra), achamos uma construção com uma caixa d´água, fomos explorar e descobrimos que alguém se abrigava ali, haviam diversas garrafas de pinga e umas mandíbulas de cachorro (canibal!), o local tinha uma parca cama, um fogão de lenha e um cacho de bananas, o que indicava que a pessoa iria voltar. Subimos na caixa d´água (6 a 7m); a escada estava podre e bamba, mas a vista era alucinante.
Descemos e fomos descobrir um pouco mais do local, Lex desceu uma escada de pedras e em seguida me chamou, o lugar era perdido no meio de um bambuzal, a luz do sol entrecortava as folhas. Quando cheguei no lugar descobri que tínhamos chegado ao ponto alto de nossa trip: o coração do sistema funicular da antiga estrada de ferro Santos-Jundiaí. Era uma casa de máquinas abandonada, tinha maquinários gigantescos que datavam de 1890, eu me senti no século passado, até a luz ali remetia ao passado, tudo era gigantesco, inacreditável e surpreendente, dava para sentir pessoas trabalhando ali, dava para escutar o barulho que as fornalhas deviam fazer. Perdemos um tempo ali, e quando subimos vimos que tínhamos que correr para chegar até Cubatão antes do anoitecer.
Em certo ponto, nas últimas 2 ou 3 pontes, fomos pelas trilhas paralelas à ferrovia, não podíamos perder tempo. Pegamos trechos muito difíceis de mato alto e trilha fechada, alguns obstáculos e sem poder parar para respirar. A certo ponto começamos a ver luzes entre a mata, e vimos que tínhamos chegado ao pátio da MRS, eis que surgiram os barulhos da estrada e o GPS apontou que já tínhamos chegado. Começamos a respirar e relaxar.
Fomos até o pátio da MRS falar com os funcionários e eles nos avisaram da impossibilidade de pegar uma carona, mas mostraram-nos o ponto de ônibus em direção à rodoviária. Conforme fomos chegando à rodoviária, nos deparamos com um sério problema: eu estava sem cartão do banco, e nosso dinheirinho tinha quase acabado, as 2 passagens deram exatamente o que tínhamos, o ônibus saiu as 19h05. No ônibus conhecemos o carioca Gabriel, gente finíssima, nos despedimos dele no Jabaquara. Fomos em direção a máquina de coca-cola, mas aquela demoníaca não aceitou nossas moedinhas. Fomos em direção ao doce lar do Lex discutindo sobre quem seria o primeiro a tomar banho, depois de arrumar as coisas. Seminovos por culpa do banho, fomos matar a saudade da cidade no McDonald’s. Chegamos e desmaiamos, a segunda-feira já batia à porta. Segunda tomamos café na padoca, fomos em direção do metrô. Depois de tanto tempo com Lex, foi estranho deixá-lo. Nosso contato nesses dias foi extremo, nossa sintonia nos permitiu se aguentar dois dias enclausurados numa barraca 2×2 olhando um para a cara do outro, às vezes sem falar nada, às vezes pensando, às vezes dormindo. Se fosse para dar errado um teria matado o outro (hehehe, bem que eu queria!). Aprendi muito nessa trip, sobre mim mesma, sobre o Lex, experimentei sensações indescritíveis, sentimentos desconhecidos que só aquele lugar e aquela situação poderiam oferecer. Se eu me arrependo? Só de não ter ido antes!!! ?
22/May/2008 as 10:05
Olha eu aqui outra vez!
Legal a forma de relatar o passeio através de um diário e em primeira pessoa. Cria uma identidade entre o leitor e o autor.
Também curti o relato da trip anterior, entitulado “Kad Carolina”.
Como já havia comentado em outra oportunidade, aventura mesmo ocorre é na cidade (Boca do Lixo… o lugar deve ser lindo DE MORRER!) onde o GPS não pode te proteger dos imprevistos causados por criaturas conscientes e não por um morro enclinado ou uma pedra lisa.
Outra coisa que eu li e dei risada foi que, após passarem pelas surpresas e aventuras da viagem partiram para a máquina de Coca-cola! hahahahahahahaha
Tenho certeza que você e a Carol vão dar risada disso também!
Mais perguntas!
Quanto tempo duraríamos se não tivéssemos rotina e “controle” sobre os acontecimentos? Será que nossa saúde mental depende dessa “rotina”?
27/May/2008 as 19:16
Grandessíssimo Gabriel ! Fico feliz de ve-lo por aqui mais uma vez.
Bom, as gentes criticam-nos por fazer essas viagens solo, que é perigoso e tudo mais de desconhecido. Convenhamos… como no slogan da Palio Adventure, “a vida na cidade é uma aventura”, quiçá muito mais mortal do que aquela ali no agreste. Sobre essa última, os perigos são conhecidos e contornáveis: GPS, roupa, atenção, botas, facão, cordas, mosquetões. Na cidade os bichos são mais espertos, mais traiçoeiros, menos previsíveis e muito melhor armados.
Agora, tomar uma Coca-Cola depois de uma trip é indispensável. É a azeitona da empadinha.
Sua questão é profunda demais para que eu possa pensar sore ela. Acho que nossa duração está nas mãos do desconhecido.
abraços !!!
27/May/2008 as 20:44
Perfeito!!!!!!!
19/Aug/2009 as 12:43
?É? também tive esta indescritível sensação de liberdade e de q eu, mesmo q por um instante, era ´dono´ do mundo ao meu redor? Descer o Sistema Funicular foi pra mim , inesquecível, foi a trip da minha vida?. <>
28/Aug/2009 as 13:06
Parabéns por fotografar um dos lugares que mais amo trilhar. A funicular é sempre um encanto apesar de seus riscos. Abraço…. Paulinho.
28/Aug/2009 as 13:41
Esse lugar é espetacular, não me canso de repetir !! O fotografarei muito ainda !
abraços !!
10/Sep/2009 as 18:42
Maravilhosa sua historia, tb fiz uma trip dessas a muito tempo a traz em 21/07/1994, fiz a trilha do poço das moças com 5 amigos, e infelizmente um deles não esta mais entre nós e eu prometi que faria um dia essa trilha que vc;s fizeram, e com certesa ainda irei faze-la parabens.
10/Sep/2009 as 19:26
Obrigado !
Conheci o Poço das Moças também, é muito bonito lá. A ferrovia é lindíssima, mas dado o estado das pontes é extremamente perigosa. Vá com cuidado !
abraços
16/Jan/2015 as 07:42
Li sobre as suas aventuras, o que mais me chamou a atenção foi que descreve que era como se os trabalhadores da MAQUINA FIXA FUNICULAR ESTIVESSEM TRABALHANDO, O SOM DAS CALDEIRAS E DAS GRANDE ROLDANAS,,, Pois bem, sou filho de ferroviário e morei no local onde voce esteve, morei entre o segundo e o terceiro plano inclinado da seera nova funicular, me surpreendi com o seus feitos e dentro de sua possibilidade gostaria de conversar sobre isso, hoje estou escrevendo um livro sobre a construção da SERRA NOVA FUNICULAR. Os acidentes, os moradores, a sua construção e um formato de diário. Por enquanto obriga e Parabéns. GHAP
13/Feb/2015 as 19:13
GHAP, ninguém melhor que você para entender este clima da ferrovia. Não sou nada ligado à misticismo, mas eu juro para você que durante à noite quando tudo esta supostamente quieto escuto coisas com muita frequência por lá. Desculpe a demora na resposta!